Que modelo de carro Jesus dirigiria? A campanha está nas ruas, nos Estados Unidos, em comerciais de televisão e cartazes espalhados por estações do metrô. "Escolher um carro merece uma reflexão cristã. Essa decisão tem menos a ver com mecânica do que com ética, obediência, caridade e amor ao próximo", diz o texto de um dos cartazes da campanha que conclama os americanos a comprar modelos de carro que poluam menos, pois eles "têm um enorme impacto sobre todas as criaturas do Senhor". Financiada pela Rede Ambiental Evangélica, a campanha usa explicitamente um versículo do Novo Testamento, "Ama o próximo como a ti mesmo", para tornar sua mensagem ecológica mais eficiente. A filosofia de Jesus Cristo, mais de 2.000 anos depois de sua existência, narrada pelos evangelistas, é ainda a mais poderosa compilação de ensinamentos morais, normas de conduta e exemplos de vida a influenciar o cotidiano dos povos civilizados do planeta – seja qual for sua cultura. De forma infinitamente mais sutil que a campanha ambiental dos evangélicos americanos, Jesus está presente mesmo aonde a hierarquia religiosa das denominações cristãs não chegou.
"Acho um equívoco dizer que Jesus olharia determinado problema moderno dessa ou daquela forma, seja a pobreza, seja a globalização", disse a VEJA o padre George Coyne, jesuíta e astrofísico de renome internacional que dirige o Observatório Astronômico do Vaticano. "Mas os ensinamentos de Jesus estão na raiz da busca de soluções para todos os grandes dilemas modernos." É possível discernir no mundo contemporâneo um Jesus invisível em movimentos sociais e políticos, em filosofias racionais e em rituais aparentemente mais afeitos ao paganismo. Jesus está presente até mesmo onde se enxerga apenas o ateísmo. Está presente, quando não no nascimento, na prática de outras religiões que competem com ele pela salvação das almas, como é o caso do islamismo e do hinduísmo. A religião fundada por Maomé no século VII tem como um de seus pilares os ensinamentos do cristianismo. Mesmo precedendo Jesus em dois milênios e a despeito de uma riquíssima e original literatura teológica, a prática religiosa dos hindus modernos reverbera muito o cristianismo. "O Mahatma Gandhi foi buscar nos primórdios do cristianismo a idéia da resistência pacífica com que venceu o domínio inglês na Índia, que já durava três séculos", escreveu o estudioso David Flusser, morto há dois anos. A essência do pensamento de Gandhi está na adaptação para a luta política de libertação do ensinamento cristão de oferecer a outra face.
As primeiras lutas sociais do fim do século XIX eram movidas a cristianismo, uma raiz tão forte que mesmo o ateísmo marxista não conseguiu destruir em 75 anos de comunismo na União Soviética e seus satélites. "A utopia igualitária de Che Guevara, sua ética da renúncia, sua disciplina doutrinária são claramente manifestações cristãs, embora sua violência seja imoral", escreveu o historiador americano Peter Gay. Diversas organizações de esquerda no Brasil nasceram nas naves das igrejas, protegidas da vigilância policial e embebidas em ensinamentos cristãos. Ali se valeram da simpatia dos clérigos, em parte pela nostalgia de poder dos tempos em que a Igreja se confundia com o Estado, mas também pelo apego dos curas ao papel de revolucionário político atribuído por alguns deles a Jesus. O Partido dos Trabalhadores foi uma dessas organizações. Um dos tripés do PT foi a chamada Teologia da Libertação – os outros dois foram os movimentos sindicais e os de intelectuais. Historicamente, a colaboração entre esquerdistas e cristãos não foi produzida apenas pelo apego mútuo às utopias. Os políticos sempre encontraram no cristianismo um elemento mobilizador de massas.
Gerações de carolas esconjuraram o movimento hippie. O festival de Woodstock, realizado em 1969, nos Estados Unidos, uma espécie de apresentação de gala do hippismo ao mundo, pode ser visto apenas como uma orgia movida a drogas e rock'n'roll. Woodstock, com sua filosofia de "paz e amor", pode também ser interpretado como a revitalização pelos jovens de antigos ensinamentos cristãos. O escritor jesuíta Jack Miles identificou na famosa celebração musical hippie diversos preceitos de Jesus. Entre eles: "Quem estiver sem pecado atire a primeira pedra" ou "Não julgueis para não serdes julgado" e, principalmente, quando se pensa na tonelagem de drogas consumidas naqueles três dias, "O que entra pela boca não torna o homem impuro, mas sim o que sai". Podem-se identificar aforismos cristãos nas bandeiras de lutas pelos direitos humanos e nas pregações ecológicas atuais. Jesus está presente quando se buscam razões para condenar o trabalho infantil ("Vinde a mim as criancinhas, pois é delas o Reino dos Céus"). As palavras de Jesus ecoam na formulação e na aceitação universal dos direitos do homem, nas campanhas contra a fome, nos movimentos de voluntariado e nos pedidos de desculpas formais aos selvagens cujas terras foram tomadas pelos colonizadores europeus. Estudiosos lembram que todo o racionalismo anticlerical da Revolução Francesa foi feito, paradoxalmente, em nome de uma filosofia derivada diretamente de Jesus: "liberdade, igualdade e fraternidade".
O inglês Edward Gibbon (1737-1794), talvez o maior historiador de todos os tempos, escreveu seu famoso livro A História do Declínio e da Queda do Império Romano, sobre a constatação fundamental de que o cristianismo amoleceu a espinha dorsal da Roma guerreira. Gibbon estudou o Império Romano do segundo século da era cristã até o que ele considera seu último suspiro, em 1453, ano em que Constantinopla caiu em mãos dos turcos-otomanos. Para a maioria dos historiadores, o Império Romano ruiu 1 000 anos antes, quando o imperador Romulus Augustulus foi deposto pelos bárbaros godos, no ano 476. Isso importa pouco na argumentação de Gibbon. O vital nela é a idéia de que, ao aceitar Jesus, os terríveis legionários romanos se enfraqueceram, "deram a outra face", passaram a "amar os inimigos" e desistiram de "ajuntar tesouros na terra, onde a traça e o caruncho os corroem". A persistência de Jesus pelos séculos e pelas mais distintas formas de organização social tem sua raiz nesse momento registrado pelo inglês Gibbon. Ele não explica totalmente as razões do crepúsculo dos conquistadores que antes dominaram o mundo, do Golfo Pérsico ao Norte da África e quase toda a Europa, incluindo onde hoje ficam Inglaterra e Alemanha. Mas ajuda a entender de onde o cristianismo tirou a força de uma filosofia que atravessaria mais de vinte séculos. Esse poder vem da originalidade absoluta para aqueles tempos da proposição básica de Jesus: a paz e o amor ao próximo. "O cristianismo operou uma ruptura completa. Primeiro, ao propor que a orientação moral e ética deveria tomar o lugar da força. Em seguida, deu outro choque ao mostrar que para os bons de coração a morte era apenas o começo da vida eterna", diz Jack Miles. A humanidade passou a girar em torno desses conceitos poderosamente simples, ora negando-os, ora aceitando-os como verdade revelada, ora tentando prová-los com os recursos da razão e da ciência. Ao pôr a perder o Império Romano, na visão de Gibbon, Jesus operou sua maior conquista, a do mundo.
Veja, Edição 1.783 - 25 de dezembro de 2002
O Mestre invisível
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